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quarta-feira, 10 de maio de 2017

O QUE É A ESTATÍSTICA ?

Estatística, condiz na organização dos dados. A questão desta ferramenta humana é como vamos organizar os dados? Isso envolve alguns parâmetros: tais como amostra, média, desvio-padrão, variância. Por qual motivo utilizamos tais parâmetros? Pois, por diversos motivos, não é possível trabalhar com a totalidade das pessoas. Portanto, utilizamos de recursos aplicados em um grupo populacional que represente o todo.
Em suma, a partir de um subconjunto da população, nós vamos extrair um parâmetro (média, desvio padrão) e esse parâmetro será representativo da população como um todo.  No final das contas você vai inferir que a população se comporta desse jeito a partir de ferramentas matemáticas
Na prática, eu vou extrair uma média da população e a partir do desvio padrão eu vou apresentar como os dados se dispersam em torno dessa média.

Tudo isso para que mesmo?

Simples, pois nos fenômenos que acontecem no mundo e na vida humana temos que lidar com a Variabilidade. Variabilidade, é uma propriedade inerente dos seres vivos , principalmente dos seres humanos. E qual subproduto da variabilidade? Incertezas. O que gera as incertezas? A imprevisibilidade, então, a questão é como vamos controlar , de algum modo, o imprevisível

domingo, 29 de janeiro de 2017

Os psiquiatras ou os esquizofrênicos ? , Por Félix Guattari.

" Questão. — A psiquiatria poderia desempenhar esse papel, por assim dizer, da nova ciência do homem, da ciência do homem por excelência?
Félix Guattari. — Mais do que a psiquiatria, por que não os esquizofrênicos, os próprios loucos? Não me parece, ao menos neste momento, que os que trabalham no domínio psiquiátrico se encontram exatamente na vanguarda!"
Capitalismo e esquizofrenia. Gilles Deleuze com Félix Guattari [1972]. Deleuze, a ilha deserta


O desastre de Wittgenstein , Por Gilles Deleuze

O Abecedário de Gilles Deleuze: W de Wittgenstein
CP: Vamos ao W.
GD: Não há nada em W.
CP: Há sim: Wittgenstein. Sei que não é nada para si...
GD: Não quero falar disso. Para mim, é uma catástrofe filosófica. É uma regressão em massa de toda a filosofia. O caso Wittgenstein é muito triste. Eles criaram um sistema de terror, no qual, sob o pretexto de fazer alguma coisa nova, instauraram a pobreza em toda a sua grandeza. Não há palavras para descrever este perigo. E é um perigo que volta. É grave, pois os wittgensteinianos são maus, eles partem tudo! Se eles vencerem, haverá um assassinato da filosofia. São assassinos da filosofia.
CP: É grave, então?
GD: Sim, é preciso ter muito cuidado!


sábado, 21 de janeiro de 2017

AUTISMO , DELIGNY E VIDA , POR FÉLIX GUATTARI

Não apenas somos equipados semioticamente para ir à fábrica ou ao escritório, como somos injetados, além disso, de uma série de representações inconscientes, tendendo a moldar nosso ego. Nosso inconsciente é equipado para assegurar a sua cumplicidade com as formações repressivas dominantes. A esta função generalizada de equipamentos, que estratifica os papéis, hierarquiza a sociedade, codifica os destinos, oporemos uma função de agenciamento coletivo do sócius que não procura mais fazer com que as pessoas entrem os quadros preestabelecidos para adaptá-los a finalidades universais e eternas, mas sim que aceita o caráter finito e delimitado historicamente do empreendimentos humanos. É sob esta condição que as singularidades do desejo poderão ser respeitadas. Tomemos o exemplo de Femand Deligny [1] em Cevennes. Ele não criou ali uma instituição para crianças autistas. Ele tomou possível que um grupo de adultos e de crianças autistas pudessem viver juntos segundo seus próprios desejos. Ele agenciou uma economia coletiva de desejo articulando pessoas, gestos, circuitos econômicos e relacionais, etc. É muito diferente o que fazem geralmente os psicólogos e os educadores que tem, a priori, uma idéia a respeito das diversas categorias de “inválidos”. O saber, aqui, não se constitui mais no poder que se apoia em todas as outras formações repressivas. A única maneira de “percurtir” o inconsciente, de fazê-lo sair de sua rotina, é dando ao desejo o meio de se exprimir no campo social. Manifestamente, Deligny gosta das pessoas chamadas de autistas E estas sabem disso. Assim como aqueles que trabalham com ele. Tudo parte daí. E é para ai que tudo volta. Desde que somo obrigados por função, a cuidar dos outros, a “assisti-los”, uma espécie de relação ascética sadomasoquista se institui, poluindo em profundidade as iniciativas aparentemente mais inocentes e mais desinteressadas. Imaginemos que “profissionais de autista”, como as pessoas do AMIPI, [2] se proponham a fazer “como Deligny” imitando seus gestos, organizando nas mesmas condições. O que é que aconteceria? Eles não fariam mais do que “aprimorar” sua tecnologia microfascista, que até agora não tinha encontrado nada melhor do que se enfeitar com o prestígio “cientifico” do neobehaviorismo anglo-saxão. Não ao nível dos gestos, dos equipamentos, das instituições, que o verdadeiro metabolismo do desejo – por exemplo, o desejo de viver – encontrara se caminho, mas sim no agenciamento de pessoas, de funções, de relações econômicas e sociais, voltado para uma política global de libertação.



sábado, 14 de janeiro de 2017

O INCONSCIENTE DA ESQUIZOANÁLISE , POR GILLES DELEUZE

"O inconsciente da esquizoanálise ignora as pessoas, os conjuntos e as leis; as imagens, as estruturas e os símbolos. Ele é órfão, assim como é anarquista e ateu. Ele é órfão, não no sentido de uma ausência designada pelo nome pai, mas no sentido de que produz a si próprio onde quer que os nomes da história designem intensidades presentes (' o mar dos nomes próprios'). Ele não é figurativo, pois seu figural é abstrato, a figura-esquiza. Ele não é estrutural nem simbólico, pois sua realidade é a do Real em sua produção e mesmo em sua inorganização. Ele não é representativo, mas somente maquínico e produtivo...
Destruir, destruir: a tarefa da esquizoánalise passa pela destruição, por toda uma faxina, toda uma curetagem do inconsciente. Destruir a ilusão do eu, o fantoche do superego, a culpabilidade, a lei, a castração. Não se trata de piedosas destruições como as que a psicanálise opera sob a benevolente neutralidade do analista. Porque estas são destruições à moda de Hegel, maneiras de conservar [...] Não é o perverso e nem o autista que escapam à psicanálise, é toda a psicanálise que é uma gigantesca perversão, a começar pela realidade do desejo, um narcisismo, um autismo monstruoso: o autismo próprio e a perversão intrínseca da máquina do capital."

Gilles Deleuze e Félix Guattari - O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia1



terça-feira, 10 de janeiro de 2017

TRECHOS DO LIVRO PROUST E OS SIGNOS , GILLES DELEUZE

O que é “a busca” na obra? “a busca, não é simplesmente um esforço de recor­dação, uma exploração da memória: a palavra deve ser tomada em sentido preciso, como na expressão "busca da verdade”.” “A Recherche se apresenta como a exploração dos diferentes mundos de signos, que se organizam em círculos e se cruzam em certos pontos.”
O que é “o tempo perdido” na obra? “não é apenas o tempo que passa, al­terando os seres e anulando o que passou; é também o tempo que se perde (por que, ao invés de trabalharmos e sermos artis­tas, perdemos tempo na vida mundana, nos amores?).”
O que é “o tempo redescoberto” na obra? “um tempo que redescobrimos no âmago do tempo perdido e que nos revela a imagem da eter­nidade; mas é também um tempo original absoluto, verdadeira eternidade que se afirma na arte.” [...] “a obra de arte é o único meio de redescobrir o tempo perdido."
O que é “aprender” na obra? “Aprender diz respeito essencialmente aos signos.” [...] “Aprender é, de início, considerar uma matéria, um obje­to, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados.” [...] “A obra de Proust é baseada não na exposição da me­mória, mas no aprendizado dos signos.”
Qual o resultado essencial do aprendizado? “há verdades a serem descobertas [no] tempo que se perde.”
O que são “signos” na obra? “Os signos são especí­ficos e constituem a matéria desse ou daquele mundo.”
1º mundo: signos mundanos. “a tarefa do aprendiz é compreender por que alguém é "recebido" em determinado mundo e por que alguém deixa de sê-lo; a que signos obedecem esses mundos e quem são seus le­gisladores e seus papas.” [...] “Não se pensa, não se age, mas emitem-se signos.” [...] “O signo mundano não remete a alguma coisa; ele a "substitui", pretende valer por seu sentido.” [...] “O aprendizado seria imperfeito e até mesmo impossível se não passasse por eles.”
2º mundo: signos do amor. “Apaixo­nar-se é individualizar alguém pelos signos que traz consigo ou emite. É tornar-se sensível a esses signos, aprendê-los.” [...] “Não podemos in­terpretar os signos de um ser amado sem desembocar em mun­dos que se formaram sem nós, que se formaram com outras pessoas, onde não somos, de início, senão um objeto como os outros.” [...] “A contradi­ção do amor consiste nisto: os meios de que dispomos para preservar-nos do ciúme são os mesmos que desenvolvem esse ciúme, dando-lhe uma espécie de autonomia, de independên­cia, com relação ao nosso amor.” [...] “os signos amorosos são signos mentiroros que não podem dirigir-se a nós senão escondendo o que exprimem, isto é, a ori­gem dos mundos desconhecidos, das ações e dos pensamentos desconhecidos que lhes dão sentido.” [...] “Era uma terra incógnita terrível a que eu acabava de aterrar, uma fase nova de sofrimentos insuspeitados que se abria. E, no entanto, esse dilúvio da realidade que nos submer­ge, se é enorme a par de nossas tímidas e ínfimas suposições, era por elas pressentido.” [...] “O mundo do amor vai dos signos reveladores da mentira aos signos ocultos de Sodoma e Gomorra.”
3º mundo: as qualidades sensíveis ou impressões. “estes signos já se distinguem dos precedentes por seu efeito imediato.” [...] “São signos verídicos, que imediatamente nos dão uma sensação de alegria incomum, signos plenos, afirmativos e alegres.” [...] “o sentido material não é nada sem uma essência ideal que ele encarna.”
4º mundo: signos da arte. “os signos da arte são os únicos imateriais.” E capazes de “revelar” a essência de cada um (no caso, do sujeito-artista).
Concluindo. “os signos mundanos, princi­palmente os signos mundanos, mas também os signos do amor e mesmo os signos sensíveis, são signos de um tempo "perdido": são os signos de um tempo que se perde. Pois não é muito sensato freqüentar a sociedade, apaixonar-se por mulheres medíocres, nem mesmo despender tantos esforços de imaginação diante de um pilriteiro, quando melhor seria conviver com pessoas pro­fundas, e, sobretudo, trabalhar.”
Sobre a verdade. “Na verdade, “Em Busca do Tempo Perdido” é uma busca da verdade.” [...] “O ciumento sente uma pequena alegria quando consegue decifrar uma men­tira do amado, como um intérprete que consegue traduzir um trecho complicado, mesmo quando a tradução lhe revela um fato pessoalmente desagradável e doloroso.” [...] “Proust não acredita que o homem, nem mesmo um espírito supostamente puro, tenha na­turalmente um desejo do verdadeiro, uma vontade de verdade. Nós só procuramos a verdade quando estamos determinados a fazê-lo em função de uma situação concreta, quando sofremos uma espécie de violência que nos leva a essa busca.” [...] “Há sempre a violência de um signo que nos força a procurar, que nos rouba a paz.” [...] “Falta necessidade às verdades intelectuais.”
Crenças impedem o aprendizado. “1ª: [objetivismo é] atribuir ao objeto os signos de que é portador.” [...] “Pensamos que o próprio ‘objeto’ traz o segredo do signo que emite.” [...] “Relacionar um signo ao objeto que o emite, atribuir ao objeto o benefício do signo, é de início a dire­ção natural da percepção ou da representação. Mas é também a direção da memória voluntária, que se lembra das coisas e não dos signos. É, ainda, a direção do prazer e da atividade prática, que se baseiam na posse das coisas ou na consumação dos obje­tos. E, de outra forma, é a tendência da inteligência.”; 2ª: “o herói se esforça para encontrar uma compensação subjetiva à decepção com relação ao objeto.”
Sobre a essência. “é uma diferença, a Diferença última e absoluta.” [...] “Não é uma diferença empírica, sempre extrínseca, entre duas coisas ou dois objetos. Proust nos dá uma aproximação da essência quando diz que ela é alguma coisa em um sujeito, como a presença de uma qualidade última no âmago de um sujeito: diferença interna, “diferença qualitativa decorrente da maneira pela qual encaramos o mundo, diferença que, sem a arte, seria o eterno segredo de cada um de nós’.” [...] “Qualidade desconhecida de um mundo único." [...] “A essência não é apenas individual, é indivi­dualizante."
Memória voluntária. “A memória voluntária vai de um presente atual a um presente que ‘foi’, isto é, a alguma coisa que foi presente e não o é mais.” [...] “essa memória não se apodera diretamente do passado: ela o recompõe com os presentes.”
Memória involuntária. “interioriza o contexto, torna o antigo contexto inseparável da sensação presente.” [...] “o essencial na memória involuntária não é a semelhança, nem mesmo a identidade, que são apenas condições; o essencial é a diferença interiorizada, tornada imanente.” [...] “A lembrança involuntária retém os dois poderes: a diferença no antigo momento e a repetição no atual.”
A matéria em que o signo é inscrito. “Os signos mundanos são mais materiais por evoluírem no vazio. Os signos amorosos são inseparáveis da força de um rosto, da textura de uma pele, da forma e do colorido de uma face: coisas que só se espiritualizam quando a criatura amada dorme. Os signos sensíveis também são qualidades materiais, sobretudo os aromas e sabores. Somente na Arte é que o signo se torna imaterial, ao mesmo tempo que seu sentido se torna espiritual.”




sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

A SINCERIDADE INABALÁVEL DO ESQUIZOFRÊNICO , FÉLIX GUATTARI.

Guattari – Ilha Deserta
É normal, numa prática de psicoterapia institucional, que o esquizofrênico o mais perdido nele mesmo libere inesperadamente as histórias mais inacreditáveis sobre a vida privada de alguém, coisas que se poderia acreditar que ninguém as soubesse, e que ele diz para você do modo o mais cru verdades que você acreditava serem secretas. Não é um mistério. O esquizofrênico tem acesso a isso de uma única vez, ele está por assim dizer ligado diretamente aos enganches que constituem o grupo em sua unidade subjetiva. Ele se encontra em situação de “vidência”, lá onde os indivíduos cristalizados na sua lógica, na sua sintaxe, nos seus interesses estão absolutamente cegos.



O QUE É O DESEJO ? DO QUE ELE DEPENDE ? POR FÉLIX GUATTARI

"O desejo não depende da lei. O desejo não é sinônimo de transgressão. O desejo é pura positividade. Não é que você tenha um inconsciente, você deve produzir o inconsciente. Produzir o inconsciente não é fácil, não é em qualquer lugar, não é com um lapso, um trocadilho ou até mesmo com um sonho que se produz um. Nada que ver com lembranças reprimidas, nem com fantasias. O inconsciente não é um teatro, mas uma fábrica, ele não representa, ele maquina, ele não triangula com papai-mamãe, mas produz e conecta e escoa por toda parte. O inconsciente é uma substância a ser fabricada, a fazer circular, um espaço social e político a ser conquistado. Tudo é uma questão de desejo. Este é o ponto."
Felix Guattari


quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

5 CARTAS DA DR.NISE DA SILVEIRA PARA O SPINOZA

CLIQUE AQUI PARA ACESSAR AS 5 CARTAS
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Meu caro Spinoza, Você é mesmo singular. Através dos séculos continua despertando admirações fervorosas, oposições, leituras diferentes de seus livros, não só no mundo dos filósofos, mas, curiosamente, atraindo pensadores das mais diversas áreas do saber, até despretensiosos leitores que insistem, embora sem formação filosófica (e este é o meu caso), no difícil e fascinante estudo da filosofia. Mais surpreendente ainda é que, à atração intelectual, muitas vezes venham juntar-se sentimentos profundos de afeição. Assim, Einstein refere-se a você como se, entre ambos, houvesse “familiaridade cotidiana”. Dedica-lhe poemas. O poema para A Ética de Spinoza transborda de afeto: “Como eu amo este homem nobre/mais do que posso dizer por palavras”.



terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Psicanálise cura tanto quanto homeopatia: entrevista com o filósofo francês Michel Onfray

O filósofo francês Michel Onfray veio ao Fronteiras do Pensamento São Paulo 2012 para falar sobre ateísmo, Freud e psicanálise, temas de seu trabalho mais polêmico: Le crépuscule d'un idole, l'affabulation freudienne (O crepúsculo de um ídolo, a fábula freudiana), sem tradução prevista por aqui. No livro, lançado em 2010, Onfray combate a visão de que a psicanálise seria uma ciência. Para o filósofo, ela se aproxima mais de uma religião e "cura tanto quanto homeopatia", sendo "tão científica quanto a ufologia".
Em entrevista ao Fronteiras, Onfray discute a veracidade e os métodos das teorias que embasaram a psicanálise. Trazendo dados e fatos apresentados no livro, Onfray aponta aqueles que considera equívocos no pensamento de Freud e experiências pessoais do austríaco que poderiam ter distorcido seu pensamento sobre o mundo e sobre os homens.
Fronteiras do Pensamento: Em seu livro, Le souci des plaisirs (2008), você fala de Freud logo no início com palavras bastante elogiosas, sem uma atitude crítica para com ele. Já em seu livro mais recente, Le crépuscule d'une idole, Freud aparece como um mito, uma lenda, se é que não coisa pior. Por que essa reconsideração tão radical em apenas dois anos?
Michel Onfray: Já no início de meu livro sobre Freud, afirmo que fui vítima do mito freudiano, pois se ensina Freud no colégio, na universidade (eu mesmo dei cursos sobre ele), e havia lido as obras de Freud — não todas, mas em número razoável — e, quando o lemos, temos a tendência de acreditar nele, até porque, em geral, não fazemos uma investigação epistemológica sobre sua disciplina, a psicanálise. Mas, na verdade, quando analisei Freud para a minha Contra-história da filosofia, empreguei o método que sempre utilizo quando estudo um autor: leio toda sua obra, as biografias disponíveis, toda sua correspondência, e, ao fazer isso, percebi que tinha sido enganado. Então, em Le souci des plaisirs, cito apenas um texto de Freud — o qual defenderia ainda hoje, pois me parece estar em contradição com o restante de sua obra —, pois ali ele afirma que a repressão da sexualidade gera a neurose. Sigo inteiramente de acordo com isso. Nossa civilização judaico-cristã produz neuroses de maneira considerável.
Em suma, acho que, se alguém lesse esse livro sem saber que é de Freud, poderia muito bem pensar que é de (Wilhelm) Reich ou de um freudiano-marxista. Na verdade, ali Freud reconhece que a civilização muda e depois passa a defender que ela não pode mudar. Eu poderia dizer que é ele quem muda, passando a achar que o pessimismo é a verdade do mundo, sobretudo depois de descobrir a pulsão de morte nos anos 20 e assumir a defesa da tese de que não é possível mudar a sociedade.
Fronteiras do Pensamento: E como sua crítica atual ao pensamento de Freud se encaixa no projeto hedonista que caracteriza sua filosofia?
Michel Onfray: Bem, escrevi uma espécie de continuação (Apostille au crépuscule: pour une psychanalyse non freudienne, 2010), que talvez incorpore como um apêndice, um posfácio, enfim, em que defendo que é possível construir uma psicanálise pós-freudiana, uma psicanálise existencial. É possível partir de Sartre e de sua filosofia existencial, como também é possível partir da etiologia e da neurologia, e com isso construir um outro tipo de psicanálise que possa ser efetiva e curar, e não manter a patologia, como faz a psicanálise freudiana. A psicanálise freudiana mantém o indivíduo em sua lenda.
Ao propor uma outra psicanálise, que incorpore o inconsciente pessoal à História — coisa que Freud jamais fez —, creio que é possível aproximar essa psicanálise existencial não freudiana do hedonismo. Para Freud, a História não existe, como também não existem as classes e outras tantas condições sociais contingentes —, elas sequer são um problema. Se você está desempregado, vive em condições miseráveis e com uma família para sustentar, é um pouco óbvio que você tenha problemas sexuais — mas não para Freud. Freud explicaria isso à luz do complexo de Édipo etc. É por isso que alguém como Reich vai destacar o papel da História, chamando atenção para a necessidade de incorporar isso à análise.
Fronteiras do Pensamento: Você insiste, e fez questão de frisar isso em sua conferência no Fronteiras do Pensamento, que Freud não é um homem de razão, mas um homem de fé. Em que consiste essa fé freudiana?
Michel Onfray: Freud toma seus desejos por realidade. Postula que o inconsciente existe; postula que no inconsciente há a horda primitiva, que há o complexo de Édipo, que há a violação da primeira mulher; e simplesmente nos diz: "é assim". Não "é assim para mim", mas "para todos". É a nossa realidade. Mas não é assim que um filósofo, um pensador, enfim, procede. A simples universalização de sua própria máxima a partir de uma intuição pessoal e subjetiva não é suficiente para fazer um filósofo. Isso é fé.
Se você pegar uma biografia de Maomé vai ver que é assim que as coisas se passam: o arcanjo Gabriel lhe aparece e lhe diz que era preciso escrever o Alcorão e pronto, ali está a verdade. E não se discute a verdade, pois foi ditada pelo arcanjo Gabriel que, por sua vez, era enviado de Deus. Freud passa um pouco essa impressão, parece ser alguém que escreve ditado por uma espécie de bom espírito que lhe faz ver a verdade universal. Assim, ele nos anuncia que no inconsciente existe o complexo de Édipo, que é uma verdade, filogeneticamente transmissível, e pouco importam as provas, simplesmente é preciso acreditar.
Em um texto seu sobre a técnica psicanalítica, ele chega mesmo a dizer em certo momento que a psicanálise somente produz seus efeitos se nela acreditarmos. É preciso ter fé. Basta lembrar o que diz Moisés: o mágico produz seus efeitos a partir do momento em que acreditamos na mágica. Portanto, o que temos é de fato um pensamento mágico que produz efeitos, mas de modo algum por ser uma ciência, mas sim porque há uma espécie de adesão, de fé — e um filósofo não pode nos exigir isso.
Fronteiras do Pensamento: Sua conferência concentrou-se fortemente na biografia de Freud e em sua correspondência, sobretudo com Fliess. Você acha que é possível, de fato, desconstruir a teoria freudiana a partir desse tipo de consideração a respeito da personalidade de Freud, de certas circunstâncias particulares que estão na origem de princípios da teoria, certas confissões que encontramos na correspondência? Isso basta?
Michel Onfray: Sim, na medida em que a biografia nos permite saber que Freud mentiu. Quando ele, por um lado, confessa em sua correspondência privada que a psicanálise não funciona, que não cura, que é um "branqueamento de negros" — ou seja, que seu xamanismo é uma farsa — e, por outro, em seus textos, gaba-se de ter curado esta e aquela paciente, essas informações são poderosas para desconstruir a teoria. Quando Freud nos fala de como propôs a teoria da psicanálise, nos fala da sublimação, que é a renúncia da vida sexual que supõe que nossa libido encontra-se desviada, desejando um objeto que seja socialmente aceitável, e conclui afirmando que renunciou, ele mesmo, à vida sexual (implicitamente: com sua mulher), para concentrar sua libido na pesquisa que vai resultar nesta ciência que é a psicanálise. Quando vemos sua biografia, de fato ele não mantinha mais relações sexuais com sua mulher — mas sim com sua cunhada.Certo, pode-se dizer que se está revolvendo o lixo da história; alguns argumentam que a vida privada de Freud não interessa; outros, que é falso que ele tenha dormido com a cunhada, que ninguém nunca viu isso acontecer. O fato é que há historiadores que fizeram esse trabalho de pesquisa, que constataram que em suas viagens de férias Freud ficava no mesmo quarto de sua cunhada, dormindo na mesma cama.
Ora, não se trata aqui de fazer papel de polícia da vida pessoal e sexual de Freud, nada disso. O ponto é que a teoria da sublimação, tal como exposta por ele, é uma mentira: não houve renúncia da sexualidade coisa nenhuma, não houve direcionamento da libido para a elaboração da teoria psicanalítica, Freud manteve sua vida sexual, só que com sua cunhada, não com sua esposa.
Em suma, não se pode afirmar — e menos ainda como Freud o faz, valendo-se de exemplo — que a renúncia da vida sexual vai gerar, de fato, a sublimação. É falso que, se a libido não está direcionada à vida sexual, ela se encontra na vida intelectual. É simplesmente falso. E assim para muitos outros aspectos da teoria, que se desconstrói a partir de uma biografia que demonstra que Freud mente, que falsifica, que inventa, que diz que certas coisas se passaram quando isso não foi o caso.
Em sua correspondência, ele afirma que trabalhou em "x" casos clínicos, casos de neuroses obsessivas, se não me engano, 23 casos; contudo, ele tinha, à época, seis pacientes. Seis não é o mesmo que 23, e nada consta que fossem todos os seis casos de neurose obsessiva. Quer dizer, ele inventa casos. Com seu talento literário, ele associa coisas ouvidas aqui e ali e transforma-as na história de um indivíduo que, quando vê aquilo, certamente não se reconhece no que vê.
Tome-se o caso do Pequeno Hans, a história do cavalo, da fobia de ser mordido, do bigode do pai, da fobia da castração etc. A certa altura, o Pequeno Hans afirma que não era nada daquilo, que apenas vira, quando ainda menino, um cavalo cair perto dele na rua e que isso obviamente provocara uma impressão muito forte, como seria o caso com qualquer menino. Não há por que imaginar que, quando se tem medo da mordida de um cavalo, trata-se de medo do bigode do pai ou que, quando se tem fobia de cavalo, trata-se da fobia da castração, porque a figura do pai está obrigatoriamente sempre em uma lógica da castração.
Quando Freud fala que tratou do menino, anos mais tarde o Pequeno Hans negará, dizendo que não fora tratado coisa nenhuma, que apenas tivera, na infância, essa fobia de cavalos porque lhe ocorrera certo episódio na rua, e que essa fobia desapareceu com o tempo. É por isso que acredito que a biografia permite-nos desconstruir a teoria.
Fronteiras do Pensamento: A crítica epistemológica não pode dispensar a crítica biográfica.
Michel Onfray: Exato. Toda a análise deve buscar ser completa, levando em conta todos os elementos disponíveis: biografia, correspondência, todas as obras e todas as fontes possíveis de informação. Ao fim e ao cabo, podemos dizer que há teorias que são sólidas, outras não.


segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

É INÚTIL REVOLTAR-SE ? TEXTO DE M.FOUCAULT

Por Michel Foucault

“Estamos preparados para morrer aos milhares com o propósito de derrubar o xá”, diziam os iranianos ano passado. E o Aiatolá recentemente: “Deixe o Irã sangrar; assim a revolução será forte.”

Há um estranho eco entre essas frases que parecem conectadas. O horror da segunda condena a intoxicação da primeira?

As revoltas pertencem à história. Mas, em certo sentido, escapam dela. O impulso graças ao qual um simples indivíduo, um grupo, uma minoria ou todo um povo diz: “Não mais obedecerei” e lança o risco de suas vidas na face de uma autoridade que considera injusta me parece algo irredutível. Uma vez que nenhuma autoridade é capaz de fazê-lo totalmente impossível: Varsóvia sempre terá seu gueto em revolta e seus esgotos cheios de rebeldes. E porque o homem que se rebela é finalmente inexplicável, produz-se, para o homem apto a, “realmente”, preferir o risco de morte à certeza de ter que obedecer, uma torção violenta que interrompe o fluxo da história e suas longas cadeias de razões.

Todas as formas de liberdade estabelecida ou demandada, todos os direitos que se defende, mesmo aqueles que dizem respeito às coisas aparentemente menos importantes, sem dúvida tem aqui um ponto de sustentação último, mais sólido e próximo da experiência que os “direitos naturais”. Se as sociedades persistem e vivem, isto é, se os poderes existentes não são “completamente absolutos”, é porque, para aquém de qualquer submissão ou coerção e para além das ameaças e das intimidações, existe a possibilidade daquele momento em que a vida não pode mais ser comprada, quando não há nada que as autoridades possam fazer e quando, enfrentando a forca e as metralhadoras, as pessoas se revoltam.

Porque estão, portanto, “fora da história” e na história, porque todos fazem conta de sua vida e morte, compreende-se a razão de os insurretos terem encontrado tão facilmente sua expressão e seu drama em formas religiosas. Promessas de outra vida, de renovação do tempo, de antecipação do salvador ou do império dos últimos dias, de um reino de pura bondade – por séculos tudo isso constituiu, onde a forma religiosa permitiu, não uma fantasia ideológica, mas a forma mesma de se experienciar as revoltas.

Então veio a era da “revolução”. Por duzentos anos, essa ideia obscureceu a história, organizou nossa percepção do tempo e polarizou as esperanças das pessoas. Constituiu um esforço homérico para domesticar revoltas com uma história racional e controlável: deu-lhes uma legitimidade, separando suas boas configurações das más e definindo as leis de seu desdobramento; fixou suas condições prévias, objetivos e maneiras de chegar à consumação. Até um status de revolucionário profissional foi definido. Repatriando, pois, a revolta, as pessoas almejavam tornar sua verdade manifesta e conduzi-la a seu verdadeiro fim. Uma promessa maravilhosa e formidável. Alguns dirão que a revolta foi colonizada em Realpolitik. Outros, que a dimensão de uma história racional foi aberta para ela. Prefiro a pergunta ingênua e um tanto febricitante que Max Horkheimer propôs certa feita: “Mas essa revolução é, de fato, uma coisa desejável?”

O enigma das revoltas. Para quem não olhou para as “razões subjacentes” ao movimento no Irã, mas atinou no modo como ele foi vivido, para quem tentou entender o que estava se passando nas mentes daqueles homens e mulheres quando arriscaram suas vidas, uma coisa foi notável. Eles inscreveram suas humilhações, seu ódio pelo regime e sua resolução de derrubá-lo nos limites do céu e da terra, numa história vislumbrada que era religiosa na mesma medida que era política. Confrontaram os Phalavis, em uma luta na qual a vida de todos estava em perigo, mas que era também uma questão de sacrifícios milenares e de promessas. Destarte, as famosas manifestações, que desempenharam um papel tão importante, podiam ao mesmo tempo responder, de uma maneira efetiva, à ameaça do exército (a ponto de paralisá-la), seguir o ritmo das cerimônias religiosas e apelar a um drama intemporal em que o poder secular é sempre acusado. Essa espantosa superimposição produziu, em meados século XX, um movimento forte o bastante para derrubar um regime aparentemente bem armado, participando, simultaneamente, de velhos sonhos que o Ocidente conhecera em tempos passados, quando as pessoas se esforçavam por inscrever as figuras da espiritualidade no campo da política.

Anos de censura e perseguição, uma classe política posta sob tutela, partidos declarados ilegais, grupos revolucionários dizimados: onde senão na religião poder-se-ia encontrar suporte para a desordem, em seguida para a rebelião, de uma população traumatizada pelo “desenvolvimento”, pela “reforma”, pela “urbanização” e por todas as outras falhas do regime? Verdade. Mas, dever-se-ia ter esperado o elemento religioso para mover-se rapidamente em favor de forças que eram mais reais e de ideologias que eram menos “arcaicas”? Indubitavelmente não, e por várias razões.

Houve o rápido sucesso do movimento, confirmando-o na forma que assumiu. Houve a solidez institucional de um clero cujo domínio sobre a população era forte e cujas ambições políticas eram vigorosas. Houve todo o contexto do movimento islâmico: com as posições estratégicas que ocupa, a relevância econômica dos países muçulmanos e sua força expansionista sobre dois continentes, é uma realidade intensa e complexa, tudo em torno do Irã. Com o resultado de que os conteúdos imaginários da revolta não se dissiparam na plena luz do dia da revolução. Eles foram imediatamente transpostos para um cenário político que parecia plenamente preparado para recebê-los, mas que era na verdade de uma natureza inteiramente diferente. Esse cenário comportava uma miscelânea dos mais importantes e dos mais atrozes elementos: a formidável esperança de, uma vez mais, fazer do Islã uma grande civilização e formas de virulenta xenofobia, desafios globais e rivalidades regionais. Juntamente a problemas de imperialismos e a subjugação de mulheres, assim por diante.

O movimento iraniano não se enquadrava nessa “lei” das revoluções que traz à luz, pelo menos assim parece, a tirania à espreita dentro de si, sob o entusiasmo cego. O que consiste na parte mais interna e mais intensamente experimentada do levante resultou diretamente em um tabuleiro de xadrez político sobrecarregado. Mas esse contato não era uma identidade. A espiritualidade que tinha sentido para aqueles que se encaminhavam para a morte não tem medida comum com o governo sangrento de um clero integrista. Os clérigos iranianos queriam autenticar seu regime por intermédio das significações que a revolta possuía. As pessoas não pensam de modo muito diferente quando desacreditam o fato do levante em virtude de haver hoje um governo de mullahs. Em ambos os casos, há medo. Medo do que aconteceu no Irã no último outono, algo de que o mundo não produzia um exemplo há muito tempo.

Por isso, precisamente, a necessidade de entender o que é irredutível nesse movimento – e profundamente ameaçador para qualquer despotismo, de ontem e de hoje.

Decerto, não há vergonha em mudar de opinião; mas não há motivo para alguém dizer que o fez quando hoje se opõe às mãos decepadas, tendo se oposto ontem às torturas da Savak.

Ninguém tem o direito de dizer: “Revolte-se; a libertação final de todos os homens depende disso.” Não estou de acordo, contudo, com quem diz: “É inútil para você revoltar-se; sempre vai dar no mesmo.” Não se deve dar ordens àqueles que arriscam suas vidas diante de um poder. Revoltar-se é ou não um direito? Deixemos a questão em aberto. As pessoas se revoltam; isso é um fato. E é assim que a subjetividade (não a dos grandes homens, mas a de qualquer um) é trazida para dentro da história, conferindo-lhe vida. Um condenado põe em perigo sua vida para protestar contra punições injustas; um louco não pode mais suportar ser confinado e humilhado; uma pessoa recusa o regime que a oprime. Isso não faz do primeiro inocente, não cura o segundo e não assegura à terceira o amanhã prometido. Ademais, ninguém é obrigado a ajudá-los. Ninguém é obrigado a declarar que essas vozes confusas cantam melhor do que as outras e falam a verdade. É suficiente que elas existam e que tenham contra si tudo que está determinado a silenciá-las até que haja um sentido em ouvi-las e em prestar atenção ao que querem dizer. Uma questão de ética? Talvez. Uma questão de realidade, sem dúvida. Todos os desencantos da história não alterarão a verdade: é por causa de tais vozes que o tempo dos seres humanos não tem a forma de uma evolução, mas sim, precisamente, de uma “história”.

Isso é inseparável de outro princípio: o poder que um homem exerce sobre outro é sempre perigoso. Não estou dizendo que o poder é, por natureza, mau; estou dizendo que o poder, com seus mecanismos, é infinito (o que não significa que ele é onipotente, muito pelo contrário). As regras para limitá-lo nunca são suficientemente severas; os princípios universais para desapossá-lo de todas as ocasiões de que apropria nunca serão suficientemente rigorosos. Contra o poder, deve-se, em um esforço incansável e interminável, definir leis invioláveis e direitos irrestritos.

Nos dias que correm, os intelectuais não dispõe de uma boa “imprensa”. Acredito que posso empregar essa palavra em um sentido bastante preciso. Não é o momento de dizer que alguém não é um intelectual; além disso, eu só provocaria um sorriso. Sou um intelectual. Se pedissem minha concepção do que faço, o estrategista sendo o homem que diz: “Que diferença faz determinada morte, determinado choro ou determinada revolta, comparados à necessidade geral, e, por outro lado, que diferença faz um princípio geral na situação particular em que vivemos?”, bem, eu teria de dizer que é indiferente para mim se o estrategista é um político, um historiador, um revolucionário, um sequaz do xá ou do aiatolá; minha ética teórica é o oposto da deles. É “anti-estratégica”: ser respeitoso quando uma singularidade se revolta, intransigente logo que o poder violar o universal. Uma escolha simples, um trabalho difícil: pois é preciso ao mesmo tempo olhar de perto, um pouco sob a história, o que a fende e a agita, e se manter atento, um pouco aquém da política, àquilo que incondicionalmente a limita. Afinal, este é meu trabalho; não sou o primeiro nem o único a realizá-lo. Mas é o que escolhi.


[Publicado no Le Monde em maio de 1979.]


MAIO DE 68 NÃO OCORREU , TEXTO DE GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI.

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ENTREVISTA COM DR.ANTÔNIO LANCETTI

Entrevista
Do consultório particular à prática coletiva
Depois de trabalhar em diferentes áreas da psicologia, ele defende a idéia de que a pulsão de vida está no coletivo e que o profissional precisa se inserir nas diversas lutas da sociedade.
O argentino Antônio Lancetti iniciou sua trajetória na psicologia estudando psicanálise. Formou-se em 1975, época de grande efervescência política em seu país. Quando ainda era militante estudantil, começou a ler a obra de Marx ao mesmo tempo em que descobria Sigmund Freud. Embora houvesse grande valorização da psicanálise, surgia no cenário argentino a discussão sobre as práticas de grupo. O psiquiatra Henrique Pichon Rivière tinha vivido há poucos anos uma experiência marcante no campo da intervenção institucional, ao enfrentar uma greve de funcionários num hospital psiquiátrico de mulheres e organizar a instituição contando apenas com as pa-cientes. O episódio deu origem às discussões sobre os grupos operativos.
Nesse contexto, Lancetti começou a trabalhar em instituições públicas, embora vivesse o conflito de grande parte dos analistas de esquerda de sua geração: ?Viver com um pé no consultório particular e outro no serviço público?. No hospital onde trabalhava, atuava com crianças. Como era grande o número de pacientes, os profissio-nais começaram a reuni-los em grupos, constatando melhoras consideráveis.
Foi nesse clima que veio para o Brasil, onde sua primeira atividade foi a apresentação de um trabalho em um congresso internacional sobre psiquiatria e pediatria, em que questionava a narrativa da psicanálise. Nesse trabalho, abordou o caso de uma criança que havia atendido no hospital argentino. Embora continuasse atendendo em consultório particular, manteve suas atividades voltadas para o serviço público. Foi o primeiro supervisor da Coordenadoria de Saúde Mental do Estado, na administração Franco Montoro. Foi professor do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, e do Instituto Brasileiro de Psicanálise (Ibrapsi), no Rio de Janeiro, atividades que deixou de exercer para ministrar um curso para formação de agentes de saúde mental com o objetivo de criar quadros para o trabalho nos serviços públicos.
Hoje é secretário de Ação Comunitária no município de Santos, onde começou a atuar na gestão da prefeita Telma de Souza como assessor do então secretário da Saúde David Capistrano. Foi naquele município que participou, como um dos líderes, da intervenção na Casa de Saúde Anchieta, primeiro fechamento de uma instituição hospitalar pela óptica do movimento por uma sociedade sem manicô-mios. Sua atuação na Secretaria é marcada por um trabalho com os segmentos excluídos da sociedade: meninos de rua, pacientes cronificados dos hospitais psiquiátricos e mendigos. Como analista institucional de orientação deleuziana, Lancetti recebeu o Jornal do CRP para falar sobre sua experiência desde os tempos de consultório até os dias de hoje.
CRP - Um aspecto que marca muito a sua trajetória e que o diferencia de grande parte dos psicólogos é o fato de o senhor ter se iniciado na psicanálise e partido para a prática no serviço público. Comumente o profissional começa sua carreira no serviço público enquanto termina sua formação e aí parte para a atuação na clínica privada.
Lancetti - A minha entrada na psicologia foi através da psicanálise. Na verdade, eu era estudante de engenharia e me interessava por disciplinas como a física e depois a filosofia. Logo cedo, como estudante, eu fui militante. Nós estudávamos livros como ?O Capital?, de Karl Marx, e nessa época eu também descobri Freud. Comecei a estudar psicanálise, primeiro sozinho, e depois em grupos. Em Buenos Aires havia um debate recente da discussão política na psicanálise. E também se discutia a questão dos grupos, as práticas coletivas transformadoras e o apoio das organizações revolucionárias. Havia uma organização composta pela Federação dos Psiquiatras e Associação dos Psicólogos que dava formação ao mesmo tempo de psicanálise, materialismo dialético e materialismo histórico. Mas a formação era fundamentalmente psicanalítica.
Por outro lado, havia uma corrente de ar fresco, representada por Henrique Pichon Rivière. Antes de eu vir para o Brasil teve um processo de discussão em relação à questão da psicanálise ligada à história argentina, às lutas das organizações de esquerda, a todo o processo repressivo. A faculdade de psicologia liderava as greves, era um dos centros de liderança das discussões políticas.
A grande questão que apareceu talvez nesse mundo foi a chegada do anti-Édipo. Quando chegou, o anti-Édipo deu uma reviravolta na cabeça de todo mundo. Na Argentina, a corrente lacaniana se desenvolveu muito na época do processo militar. O lacanismo esteve muito ligado a esse processo. Na época foi necessário esconder os livros de marxismo, tirá-los das bibliotecas, estudar Heidegger e dar cursos de fenomenologia do espírito para introduzir Lacan. Foi grande a proliferação de escolas. Havia os gurus, a moda eram os grupos de estudo.
Nesse clima, eu comecei a trabalhar num hospital público. Nós tínhamos que fazer uma espécie de vestibular para poder entrar num trabalho que era público. Havia filas de pessoas interessadas em trabalhar. E o trabalho era gratuito. Não se recebia. Nós íamos algumas vezes por semana e pagávamos supervisor com dinheiro próprio. E além disso pagávamos análise.
Nós éramos muito rígidos. Recons-truíamos todas as sessões e discutíamos os casos. Apesar de a psicanálise ser muito valorizada, começamos a discutir a questão dos grupos. Eu trabalhava no serviço de atendimento a crianças. Como tínhamos muitos pacientes, começamos a fazer grupos. Não sabíamos por que, mas as crianças dos grupos melhoravam e as outras não melhoravam.
Mais ou menos nesse clima eu vim para o Brasil, inicialmente para o Rio de Janeiro. Minha primeira atividade foi num congresso internacional de psicanálise e pediatria. Apresentei um trabalho naquele congresso sobre uma criança que havíamos atendido no hospital. A questão principal que o trabalho levantava era sobre que tipo de narrativa era a da clínica. Isso foi uma coisa que sempre me preocupou. Se era uma narrativa literária, literal, e como isso tinha a ver com o tipo de transmissão que se fazia para o supervisor. Todo mundo conta sua história a partir da teoria que professa. Um paciente vai produzir certo tipo de deslocamento metonímico, enfim, de acordo com a teoria do analista.
E nós estávamos discutindo a questão da crítica institucional. Pichon já tinha suportado uma greve de funcionários num hospital psiquiátrico de mulheres e organizou o hospital só com as pacientes. Foi uma coisa parecida ao que aconteceu com Basaglia na Segunda Guerra. Um dia houve um bombardeio e o hospital ficou sem funcionários e nada aconteceu. Assim começou a surgir a idéia de que não se precisava de funcionários. Que eles mais atrapalhavam do que ajudavam. E esta idéia era muito forte. Isso reapareceu aqui. Na minha história no Brasil quando nós começamos a trabalhar com a rede alternativa à psiquiatria. Isso foi a primeira experiência que eu vivi aqui, e depois nós fundamos, com um grupo de companheiros, o grupo de saúde mental do PT. Esse grupo teve uma importância muito destacável na área de saúde mental. Foi a partir desse grupo que se gerou o movimento que desencadeou os Congressos de Saúde Mental e a adoção da idéia de uma sociedade sem manicômios.
Quando vim para o Brasil eu tinha que viver de alguma coisa. Então eu vivia do consultório, mas trabalhava dando formação para outros trabalhadores de saúde mental. Eu estava com o drama de toda essa geração, que é ter um pé na saúde pública e outro na saúde particular. Como eu, havia vários. Principalmente aqueles analistas de esquerda. Para nós era mais valioso o serviço público. Eu me criei como psicólogo, num ?fermento? onde o público era teoricamente mais interessante em todos os aspectos. O público descrevia mais sobre os acontecimentos. Os debates das reuniões de equipe de que nós participávamos eram muito interessantes.
CRP - O senhor foi um dos interventores na Casa de Saúde Anchieta, realizada em Santos na administração da prefeita Telma de Souza e que culminou no desmantelamento do hospital. Como foi o processo que desencadeou a intervenção?
Lancetti - O hospital era um campo de concentração atípico, porque geralmente os campos ficam afastados e esse ficava no centro da cidade. Não havia jurisprudência para uma intervenção. O professor Sérgio da Cunha, que é um grande jurista, dizia que não havia embasamento legal e que existiam apenas os princípios da Constituição de 1988. Ou seja, não existia uma regulamentação para fazer a intervenção e nós dependeríamos do apoio que conseguíssemos na cidade.
Por outro lado, o David Capistrano, secretário municipal de Saúde na época, conseguiu o resultado de uma supervisão técnica realizada no hospital. O documento apontava que havia mortes injustificadas, excesso de pacientes. Baseado nessa história, nós lançamos uma campanha no rádio em que dizíamos para a população que não enviasse pessoas para aquele hospital. E preparamos isso muito rapidamente. A intervenção, portanto, não foi dada pelas vias legais. Foi baseada nos resultados dessa supervisão técnica.
Uma semana depois que fizemos a intervenção um juiz concedeu liminar favorável ao hospital e tivemos que sair. Na semana seguinte a liminar foi suspensa e voltamos ao hospital. Começou uma batalha extraordinária porque, na verdade, na experiência de Santos, nós não só inventamos coisas singulares, nós misturamos todos os modelos que tínhamos na cabeça. Nós tínhamos o modelo basagliano, segundo o qual tínhamos que ir contra a instituição, o modelo do território, de Trieste (município italiano que desenvolveu com sucesso a reforma, dando origem a uma sociedade sem manicômios).
Nós tivemos que remontar o hospital, porque as pessoas estavam muito doentes. Tinham piolhos, infecções. E dávamos alta. Tudo era muito complicado. Os médicos não apareciam para trabalhar. Todos foram mandados embora. E os funcionários eram muito cronificados e administravam castigos corporais, eletrochoques etc. Ao verem desmontarmos aquilo, fizeram uma greve. Ficamos sem funcionários e tivemos que administrar sem eles. Nós fizemos uma assembléia, dividimos o serviço. Os funcionários estavam todos lá fora e o hospital funcionando até melhor sem eles.
Nós fazíamos assembléias com todos os parentes que chegavam aos domingos. E também com os pacientes. Primeiro, separadamente, homens e mulheres e, depois, juntávamos todos. Eram assembléias bem complicadas, mas extraordinárias. Eles fizeram teatro, depois apareceu a Rádio Tan Tan (programa desenvolvido numa rádio de Santos, totalmente produzido pelos internos do hospital) e tantos outros inventos. E aí o grupo ia dividindo-se no hospital, e os que estavam mais fortalecidos saíam com seus pacientes e montavam os Núcleos de Atenção Psico-Social (Naps). Nós vivíamos num estado de virtualidade muito intenso. Havia constantemente idéias e muitos projetos.
CRP - Hoje algumas correntes do movimento da luta antimanicomial consideram que os Naps correm riscos porque estariam sendo cortejados pela iniciativa privada como uma forma de anga-riar verbas do governo federal, através de convênios com o SUS, mas sem os princípios que os norteavam quando de sua criação. O senhor também vê tais riscos?
Lancetti - Com os métodos de atendimento da iniciativa privada que se conhecem até agora duvido que tenham êxito, que façam alguma coisa inteligente, porque o sistema é de rendimento. Nos Naps é preciso investir muito nas pessoas. A essência da história dos Naps é a valorização, a criação de valores, a emergência.
Para isso precisa ter muita inventividade. E, principalmente, a matéria com a qual se transforma é o próprio corpo dos trabalhadores de saúde mental. Eles põem o corpo. Se isso não acontece, não vai haver iniciativa pública que dê conta, e eu não sei qual vai ser o tipo de iniciativa. Pode até ser mais fácil fazê-lo através da iniciativa privada, porque a empresa pública atrapalha bem no Brasil, pelas regras, pelo mundo kafkiano que implica administrá-la. Depende de como se invista, que grau de importância vai ter o investimento daquilo que não é público.
Há, no entanto, um ponto fundamental: duvido de qualquer experiência que não tenha trabalho coletivo, grupos. A pulsão de vida está no coletivo. Depende disso. Essa é que é a matéria. Se a administração vai ser privada, aí eu não sei. Agora, o primeiro analisador seria o dinheiro. Sempre a análise institucional começa pelo dinheiro, que é o principal analisador de qualquer instituição.
Na nossa experiência, por exemplo, a história da reforma psiquiátrica se expandiu para o campo da assistência social. Nós juntamos uma população sedentária, pacientes crônicos do hospital psiquiátrico, com uma população nômade, que são os meninos de rua. Foi fantástico. Nós tínhamos um paciente com Síndrome de Down que estava lá internado desde os 8 anos. Ele se chamava Manequinho. Faleceu com 38 anos. Ele só batia tampinhas de desodorante. Não fazia outra coisa. E aí os meninos entraram numa relação com ele e, um dia, eu encontrei o Manequinho dançando twist. Uma vez, o psiquiatra levou o Manequinho numa assembléia que eu coordenava uma vez por semana. Eu achei muito sensível e adequado da parte dele. Só que ele me disse que não havia sido idéia dele levar o Manequinho, mas de um menino, que o havia levado. Nós vivíamos uma época de tanta intensidade que não houve nenhum suicídio no hospital. Não havia espaço para a morte. Havia uma grande intensidade de vida. O que se criava, tudo se reinscrevia. Houve uma verdadeira intervenção institucional, uma verdadeira revolução. Ninguém que passou por lá ficou igual. Ou se separou, ou se casou, a vida dele se transformou. Então, se a iniciativa privada conseguir fazer isso, conseguir que se desarranje tanto a vida dessas pessoas...
CRP - Como foi a atuação dos psicólogos nesse período?
Lancetti - Foi importante a intervenção na instituição psicologia. Os psicólogos chegavam lá no Anchieta e perguntavam onde era a sala deles. Eles queriam ter uma sala. Nós explicávamos que não tinha sala. Que eles tinham que ir para o pátio e se virar. Muitos choravam, se desesperavam. Nós explicávamos, por exemplo, que ele tinha que cortar as unhas dos pacientes, porque quando se corta a unha entra em contato, conversa e começa a saber da vida, da história. E fazer daquele caso uma biografia. Isso foi muito complicado, principalmente com psicólogos, para eles entenderem que tinham que tocar, o problema da escuta, que tudo isso estava totalmente reformulado.
CRP - Essa é uma das contradições que o profissional da psicologia está enfrentando agora. Ele continua aprendendo na universidade a trabalhar com um modelo médico-clínico, mas vai encontrar uma realidade totalmente diversa e não sabe lidar com ela. Na sua opinião, como atuar nessas condições?
Lancetti - O psicólogo precisa ler mais Nietzsche e, principalmente, Spinoza, para entrar em contato com a sensibilidade psicológica. Na minha opinião, todo desarranjo, toda quebra de identidade profissional é benéfica, porque todos os fracassos institucionais, ou o hospital psiquiátrico, ou a Febem, adotaram os modelos médico-clínicos e o psicólogo foi na carona disso.
Toda ruptura, desde que seja séria, vai quebrar, mas não vai deixar sem sistemática. Mas ela precisa ser rigorosa. É preciso dizer que não é de um jeito, mas explicar, passo a passo, como é que funciona, por um problema de ética enunciativa. Para isso a psicologia vai ter que mudar, criar outros tipos de recursos, outros paradigmas. Mas isso traz um desarranjo corporal. Por isso as pessoas precisam fazer supervisão, para que alguém suporte e processe o desarranjo que produz essa mudança.
É interessante que essa ida do psicólogo às diferentes experiências implique uma viagem onde ele não fique se defendendo. Porque senão ele vira um juiz. O trabalho do psicólogo no Poder Judiciário, por exemplo, o transforma no aprendiz de uma personagem de Kafka. Ele é muito pior do que o juiz. Eu digo isso porque constantemente tenho discussões aqui com pessoas muito inteligentes e sensíveis que trabalham no Judiciário. Mas na hora que se toca o paradigma, aí eles ficam na defensiva. Então aquilo começa a funcionar como a procura das idéias justas. E o problema não é ter idéias justas, como dizia Bob Dylan. É ter justo uma idéia.
Então ficam atrapalhando aqueles processos ricos de produção, argumentando que está faltando isso ou aquilo. E isso é muito démodé, porque as sociedades disciplinares, todas as ciências de radical psi, como Foucault demonstrou, se inventaram para criar um tipo de individuação. Mas isso está fora de moda. Agora estamos na sociedade de controle. A mídia funciona. No Brasil, há um exemplo. A rede Globo funciona melhor que a cadeia. A capacidade do sujeito ter autocontrole é muito maior pela eficácia do acoplamento dos diversos componentes do sistema semiótico vigente, em que a disciplina é um deles. Mas não é o fundamento. Não estamos no final do século XIX. Então é importante que essa ida do psicólogo transmita um novo olhar, que seja uma espécie de olhar antropológico lúcido. Quando ele transita do Judiciário para a assistência social, por exemplo, isso é muito interessante. E às vezes o psicólogo consegue isso.
CRP - Nesse caso, em termos concretos, o que se exige hoje de um profissional da psicologia para trabalhar nos projetos que estão sendo desenvolvidos em Santos?
Lancetti - É necessário uma desaprendizagem que implica um outro investimento que às vezes eles não estão dispostos. Por isso é que eu gosto mais de assistentes sociais. Primeiro porque eles são menos preconceituosos, não têm nenhum modelo lacaniano na cabeça. Então eles conseguem fazer melhor os grupos, permitem que as coletividades se organizem mais. Eles têm uma afecção maior. O assistente social às vezes é muito impregnado de um espírito piegas, é verdade. Mas às vezes ele consegue, relativamente, se desvencilhar disso, porque disso ninguém consegue se desvencilhar. Só Nietzsche deixou de ser cristão.
É preciso comandar. Sou eu que me lanço. Não é como no consultório que alguém me procura e vem me perguntar pela verdade da sua história. É um processo distinto. E isso é um campo mais complexo. O grau de complexidade da objetologia formal se complica. Ela é menos fixa, do ponto de vista epistemológico a coisa fica muito mais rica, muito mais interessante. É por isso que eu digo que é no serviço público que isso acontece, e não no consultório particular. Ali é muito reduzido. É importante que a ida do psicólogo não seja uma viagem de turista. O turista faz uma viagem que poderia fazer no seu aparelho de vídeo. Um viajante é diferente de um turista. É isso que seria interessante que a pessoa que está iniciando pense.
É preciso também que haja mais rigor na formação. Que as pessoas estudem mais. Eu vejo uma geração em que é complicado ter disciplina, estudar, ler. Um psicólogo mal informado é como um lutador de boxe míope. Não dá certo. Ele vai apanhar. E estou falando de informação em outros campos, como literatura, política. E que não fique reduzido a sua área, porque senão fica muito empobrecido.
CRP - A realidade dos órgãos públicos de Santos, hoje, não reflete a maioria das instituições brasileiras. No âmbito mais geral, como o senhor pensa que o psicólogo possa atuar nessas instituições?
Lancetti - Eu acho que aí se daria uma nota lacaniana. Eu penso que o conceito de objeto a de Lacan ainda não foi suficientemente explorado. Ou então o objeto paradoxal de Winicott. O espaço é um espaço transicional. Esse é que é o drama do psicólogo ou de qualquer outra profissão. Quando ele começa a pensar em termos espaciais, ele se perde. O problema é o tempo. Então, se ele tem que começar a encontrar espaço, reconhecimento de identidade e tudo isso, ele vai cair no drama do corporativismo. Tem que reformular o conceito de espaço, de território. E de como ele intervém, seja no campo clínico, institucional grupal, coletivo etc. Caso contrário ele empobrece sua ação e vai cair nesse drama que Gilles Deleuze chama o fim da luta de classes e o reinado do corporativismo. Isso vai empobrecer tudo, simplificar de novo.
Então, isso é o mais interessante que posso dizer. Sim, ele tem que intervir, mas como intervir, para quê? Como produzir, que tipo de produção ele vai conseguir, no campo da subjetividade, da produção social da subjetividade? Como ele vai pensar diversos sistemas semióticos? Porque isso não se limita à linguagem, são todos os gestuais, os pré-significantes. Por exemplo, no caso da criança, do desenvolvimento pessoal e social, previsto pelo ECA, o psicólogo pode dizer assim: onde está a singularidade, o traço único desse desenvolvimento? É isso que o psicólogo tem que dizer. É esse que tem que ser o olhar, a intervenção e o grito do psicólogo, para ele ter uma importância. Aí é que está a loucura. Um supervisionando meu falava que ele tinha um paciente no manicômio judiciário que o chamava e dizia assim: olha, o senhor é o único que pode me entender, porque o senhor é psicótico. E ele corrigia e dizia que não era psicótico, mas psicólogo. O paciente insistia que ele era psicótico. No dia que aceitou que era psicótico, ele começou a mudar aquele sujeito.
Esse é que é o espaço do psicólogo. E, para fazer isso, precisa ser muito sério, senão vira porra-louquice. E isso é o rigor do trabalho, da formação, que não é aquilo quadradinho. Agora também estão querendo aplicar a tríade da formação do psicólogo e do psicanalista ao caso do educador de rua. Então é a tríade supervisão, formação teórica e de novo caímos no aparelho da distinção entre objeto formal abstrato e prescrições técnicas. E depois não dá certo. Não funciona do jeito que eu queria. É preciso criar passo a passo essa crítica, e eu acho que todas as áreas são interessantes, desde que haja o enriquecimento e a valorização.
CRP - Dentro dessa sua visão do trabalho institucional do psicólogo, como o senhor pensa o papel do Conselho Regional de Psicologia?
Lancetti - Tudo o que se faça em prol dessas idéias que para nós são caras e fundamentais, agenciar essa idéia de objeto complexo, a idéia de produção de solidariedade, de produção de subjetividade ligada à vida, enfim, tudo o que seja produção de vida nesse campo tão complexo, eu acho que tem um campo propício. Essa linha de atuação do CRP de acompanhar toda a questão antimanicomial, coisa que antes não se fazia, é um fato positivo. Além de acompanhar e polemizar toda a questão de direitos, como é que se geram esses direitos.
Eu acho que é um desafio criar essa diversidade de direitos que não sejam só os do psicólogo. Esse é um papel muito interessante. Acompanhar todas essas lutas de corte ético, de corte vital, que são as lutas antimanicomiais, a produção de direitos, a criação de dispositivos onde a criança se desenvolva. Eu acho que o psicólogo tem um campo muito interessante em relação à questão da institucionalização da criança nas Febens. Porque é dramática a situação, principalmente em São Paulo, onde está a metade dos internos do Brasil.
Tudo isso não só gera um campo de complexidade apetecível do ponto de vista teórico, como de apoio a todos os companheiros que estão ali presentes. Você pode reparar que em todas essas experiências de inovações e invenções institucionais e de grandes lutas pela cidadania, seja no campo dos direitos singulares, dos loucos, da mulher ou da criança, há psicólogos. Porém, é importante que a gente problematize. Como diz o Krenak, que é um grande líder indígena, ?o que o exército, a igreja e as mais diversas instituições não conseguiram fazer com meus parentes, os psicólogos conseguiram. Um psicólogo é um bicho perigosíssimo?.
Então todo esse trabalho da transferência institucional, essa área de intervenção, tem uma potência muito grande. E ele tem um papel também na reabilitação social, que passa pelo trabalho que não fica reduzido ao consultório. É importante também que nós, com toda essa velocidade que o mundo atual apresenta, e apesar de o imperialismo semiótico nos impor acreditar que nada muda, consigamos investir nessas experiências que estão se multiplicando no Brasil. No campo da saúde mental, no campo da criança, os projetos são muitos. E acho que nós temos muito a dizer.
Mas precisamos ser humildes. Nós temos muito a aprender com os pedagogos. Por exemplo, no caso dos meninos de rua, há uma preponderância da pedagogia, mas não é uma pedagogia cognitiva. Os processos mais duros, mais rigorosos que nós podemos chamar de produção de subjetividade com seus acoplamentos, seus agenciamentos, enfim todo esse campo que é o do inconsciente produtivo e não representativo, todo esse campo não é reduzido ao psicólogo, mas nós não devemos desprezá-lo. E o papel do CRP é problematizar, discutir, reagrupar, fortalecer essas lutas, essas grandes lutas que estão se travando, essa luta pelo Estatuto da Criança e do Adolescente é um embate muito sério. Mas nós só demonstraremos que o ECA funciona se reduz a mortalidade infantil, a repetência, se aumenta o sucesso escolar, a promoção da criança, a promoção do desenvolvimento. E aí nós temos muito a dizer e fazer.