segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

É INÚTIL REVOLTAR-SE ? TEXTO DE M.FOUCAULT

Por Michel Foucault

“Estamos preparados para morrer aos milhares com o propósito de derrubar o xá”, diziam os iranianos ano passado. E o Aiatolá recentemente: “Deixe o Irã sangrar; assim a revolução será forte.”

Há um estranho eco entre essas frases que parecem conectadas. O horror da segunda condena a intoxicação da primeira?

As revoltas pertencem à história. Mas, em certo sentido, escapam dela. O impulso graças ao qual um simples indivíduo, um grupo, uma minoria ou todo um povo diz: “Não mais obedecerei” e lança o risco de suas vidas na face de uma autoridade que considera injusta me parece algo irredutível. Uma vez que nenhuma autoridade é capaz de fazê-lo totalmente impossível: Varsóvia sempre terá seu gueto em revolta e seus esgotos cheios de rebeldes. E porque o homem que se rebela é finalmente inexplicável, produz-se, para o homem apto a, “realmente”, preferir o risco de morte à certeza de ter que obedecer, uma torção violenta que interrompe o fluxo da história e suas longas cadeias de razões.

Todas as formas de liberdade estabelecida ou demandada, todos os direitos que se defende, mesmo aqueles que dizem respeito às coisas aparentemente menos importantes, sem dúvida tem aqui um ponto de sustentação último, mais sólido e próximo da experiência que os “direitos naturais”. Se as sociedades persistem e vivem, isto é, se os poderes existentes não são “completamente absolutos”, é porque, para aquém de qualquer submissão ou coerção e para além das ameaças e das intimidações, existe a possibilidade daquele momento em que a vida não pode mais ser comprada, quando não há nada que as autoridades possam fazer e quando, enfrentando a forca e as metralhadoras, as pessoas se revoltam.

Porque estão, portanto, “fora da história” e na história, porque todos fazem conta de sua vida e morte, compreende-se a razão de os insurretos terem encontrado tão facilmente sua expressão e seu drama em formas religiosas. Promessas de outra vida, de renovação do tempo, de antecipação do salvador ou do império dos últimos dias, de um reino de pura bondade – por séculos tudo isso constituiu, onde a forma religiosa permitiu, não uma fantasia ideológica, mas a forma mesma de se experienciar as revoltas.

Então veio a era da “revolução”. Por duzentos anos, essa ideia obscureceu a história, organizou nossa percepção do tempo e polarizou as esperanças das pessoas. Constituiu um esforço homérico para domesticar revoltas com uma história racional e controlável: deu-lhes uma legitimidade, separando suas boas configurações das más e definindo as leis de seu desdobramento; fixou suas condições prévias, objetivos e maneiras de chegar à consumação. Até um status de revolucionário profissional foi definido. Repatriando, pois, a revolta, as pessoas almejavam tornar sua verdade manifesta e conduzi-la a seu verdadeiro fim. Uma promessa maravilhosa e formidável. Alguns dirão que a revolta foi colonizada em Realpolitik. Outros, que a dimensão de uma história racional foi aberta para ela. Prefiro a pergunta ingênua e um tanto febricitante que Max Horkheimer propôs certa feita: “Mas essa revolução é, de fato, uma coisa desejável?”

O enigma das revoltas. Para quem não olhou para as “razões subjacentes” ao movimento no Irã, mas atinou no modo como ele foi vivido, para quem tentou entender o que estava se passando nas mentes daqueles homens e mulheres quando arriscaram suas vidas, uma coisa foi notável. Eles inscreveram suas humilhações, seu ódio pelo regime e sua resolução de derrubá-lo nos limites do céu e da terra, numa história vislumbrada que era religiosa na mesma medida que era política. Confrontaram os Phalavis, em uma luta na qual a vida de todos estava em perigo, mas que era também uma questão de sacrifícios milenares e de promessas. Destarte, as famosas manifestações, que desempenharam um papel tão importante, podiam ao mesmo tempo responder, de uma maneira efetiva, à ameaça do exército (a ponto de paralisá-la), seguir o ritmo das cerimônias religiosas e apelar a um drama intemporal em que o poder secular é sempre acusado. Essa espantosa superimposição produziu, em meados século XX, um movimento forte o bastante para derrubar um regime aparentemente bem armado, participando, simultaneamente, de velhos sonhos que o Ocidente conhecera em tempos passados, quando as pessoas se esforçavam por inscrever as figuras da espiritualidade no campo da política.

Anos de censura e perseguição, uma classe política posta sob tutela, partidos declarados ilegais, grupos revolucionários dizimados: onde senão na religião poder-se-ia encontrar suporte para a desordem, em seguida para a rebelião, de uma população traumatizada pelo “desenvolvimento”, pela “reforma”, pela “urbanização” e por todas as outras falhas do regime? Verdade. Mas, dever-se-ia ter esperado o elemento religioso para mover-se rapidamente em favor de forças que eram mais reais e de ideologias que eram menos “arcaicas”? Indubitavelmente não, e por várias razões.

Houve o rápido sucesso do movimento, confirmando-o na forma que assumiu. Houve a solidez institucional de um clero cujo domínio sobre a população era forte e cujas ambições políticas eram vigorosas. Houve todo o contexto do movimento islâmico: com as posições estratégicas que ocupa, a relevância econômica dos países muçulmanos e sua força expansionista sobre dois continentes, é uma realidade intensa e complexa, tudo em torno do Irã. Com o resultado de que os conteúdos imaginários da revolta não se dissiparam na plena luz do dia da revolução. Eles foram imediatamente transpostos para um cenário político que parecia plenamente preparado para recebê-los, mas que era na verdade de uma natureza inteiramente diferente. Esse cenário comportava uma miscelânea dos mais importantes e dos mais atrozes elementos: a formidável esperança de, uma vez mais, fazer do Islã uma grande civilização e formas de virulenta xenofobia, desafios globais e rivalidades regionais. Juntamente a problemas de imperialismos e a subjugação de mulheres, assim por diante.

O movimento iraniano não se enquadrava nessa “lei” das revoluções que traz à luz, pelo menos assim parece, a tirania à espreita dentro de si, sob o entusiasmo cego. O que consiste na parte mais interna e mais intensamente experimentada do levante resultou diretamente em um tabuleiro de xadrez político sobrecarregado. Mas esse contato não era uma identidade. A espiritualidade que tinha sentido para aqueles que se encaminhavam para a morte não tem medida comum com o governo sangrento de um clero integrista. Os clérigos iranianos queriam autenticar seu regime por intermédio das significações que a revolta possuía. As pessoas não pensam de modo muito diferente quando desacreditam o fato do levante em virtude de haver hoje um governo de mullahs. Em ambos os casos, há medo. Medo do que aconteceu no Irã no último outono, algo de que o mundo não produzia um exemplo há muito tempo.

Por isso, precisamente, a necessidade de entender o que é irredutível nesse movimento – e profundamente ameaçador para qualquer despotismo, de ontem e de hoje.

Decerto, não há vergonha em mudar de opinião; mas não há motivo para alguém dizer que o fez quando hoje se opõe às mãos decepadas, tendo se oposto ontem às torturas da Savak.

Ninguém tem o direito de dizer: “Revolte-se; a libertação final de todos os homens depende disso.” Não estou de acordo, contudo, com quem diz: “É inútil para você revoltar-se; sempre vai dar no mesmo.” Não se deve dar ordens àqueles que arriscam suas vidas diante de um poder. Revoltar-se é ou não um direito? Deixemos a questão em aberto. As pessoas se revoltam; isso é um fato. E é assim que a subjetividade (não a dos grandes homens, mas a de qualquer um) é trazida para dentro da história, conferindo-lhe vida. Um condenado põe em perigo sua vida para protestar contra punições injustas; um louco não pode mais suportar ser confinado e humilhado; uma pessoa recusa o regime que a oprime. Isso não faz do primeiro inocente, não cura o segundo e não assegura à terceira o amanhã prometido. Ademais, ninguém é obrigado a ajudá-los. Ninguém é obrigado a declarar que essas vozes confusas cantam melhor do que as outras e falam a verdade. É suficiente que elas existam e que tenham contra si tudo que está determinado a silenciá-las até que haja um sentido em ouvi-las e em prestar atenção ao que querem dizer. Uma questão de ética? Talvez. Uma questão de realidade, sem dúvida. Todos os desencantos da história não alterarão a verdade: é por causa de tais vozes que o tempo dos seres humanos não tem a forma de uma evolução, mas sim, precisamente, de uma “história”.

Isso é inseparável de outro princípio: o poder que um homem exerce sobre outro é sempre perigoso. Não estou dizendo que o poder é, por natureza, mau; estou dizendo que o poder, com seus mecanismos, é infinito (o que não significa que ele é onipotente, muito pelo contrário). As regras para limitá-lo nunca são suficientemente severas; os princípios universais para desapossá-lo de todas as ocasiões de que apropria nunca serão suficientemente rigorosos. Contra o poder, deve-se, em um esforço incansável e interminável, definir leis invioláveis e direitos irrestritos.

Nos dias que correm, os intelectuais não dispõe de uma boa “imprensa”. Acredito que posso empregar essa palavra em um sentido bastante preciso. Não é o momento de dizer que alguém não é um intelectual; além disso, eu só provocaria um sorriso. Sou um intelectual. Se pedissem minha concepção do que faço, o estrategista sendo o homem que diz: “Que diferença faz determinada morte, determinado choro ou determinada revolta, comparados à necessidade geral, e, por outro lado, que diferença faz um princípio geral na situação particular em que vivemos?”, bem, eu teria de dizer que é indiferente para mim se o estrategista é um político, um historiador, um revolucionário, um sequaz do xá ou do aiatolá; minha ética teórica é o oposto da deles. É “anti-estratégica”: ser respeitoso quando uma singularidade se revolta, intransigente logo que o poder violar o universal. Uma escolha simples, um trabalho difícil: pois é preciso ao mesmo tempo olhar de perto, um pouco sob a história, o que a fende e a agita, e se manter atento, um pouco aquém da política, àquilo que incondicionalmente a limita. Afinal, este é meu trabalho; não sou o primeiro nem o único a realizá-lo. Mas é o que escolhi.


[Publicado no Le Monde em maio de 1979.]


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